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sexta-feira, 9 de julho de 2010

A Palavra da Periferia - APALPE






Coordenado por Heloísa Buarque de Hollanda e Marcus Vinicius Faustini, o projeto vai dar vez e voz para a periferia do Rio.

O ponto de partida para o trabalho será o “Guia afetivo da periferia”, romance que revela as impressões de Faustini, em suas andanças pela cidade do Rio.

A ideia é fazer com que os participantes elaborem intervenções artísticas, expressões de sua relação com a cidade, por meio de linguagens diversificadas.

De 10 de julho a 12 de setembro, os inscritos participarão de oficinas, debates, palestras, visitas guiadas, entre outras atividades.

Artistas e ativistas sociais vão apresentar as diversas linguagens, de Literatura a Hip-hop, passando pelas Artes Plásticas, culminando na realização de um grande evento na cidade.

Coordenadora do Programa Avançado de Cultura Contemporânea da Universidade Federal do Rio de Janeiro (PACC/UFRJ), Heloísa Buarque de Hollanda destaca o trabalho sobre a palavra que será feito no Apalpe.

Já Marcus Vinicius Faustini explica o porquê do incentivo à produção de novos guias para mapear, afetivamente, o território da cidade.

Eis a apresentação do Apalpe feita por seus coordenadores, os pais do projeto:

O que é o Apalpe?
Heloísa Buarque de Hollanda – O Apalpe tem um significado diferente para cada um de nós dois. Eu sou uma professora de Literatura crente na palavra. Acredito piamente na palavra. A palavra é uma carta de alforria. Sabendo lidar com ela, uma pessoa é livre e poderosa. O Apalpe, para mim, é sobre tudo escrita, não é tanto memória. É mais o exercício da palavra em relação à experiência de cada um. Mas não é qualquer palavra. É uma palavra que vai ser muito trabalhada. Vamos fazer oficinas, palestras, grupos de motivação; vamos dar todos os recursos para as pessoas fazerem um uso competente da palavra. Quando a pessoa conquista a palavra, conquista o mundo.

Marcus Vinicius Faustini – O Apalpe é uma tentativa de criar uma relação com as palavras na cidade plasticamente. É a palavra como estética, que se reconhece. O Apalpe é um projeto-ação designer para se relacionar com a cidade e com as pessoas, a partir da palavra. Quem vai procurar o Apalpe é quem quer expressar a existência. O Apalpe é o lugar do encontro, aonde a cidade se encontra. Queremos reunir pessoas de diferentes lugares da região metropolitana do Rio de Janeiro.

E como será o projeto?
Faustini – Vamos ter oficinas de criação a partir de elementos externos. Criar sobre o território é criar sobre elementos externos. Temos de fugir da representação. A representação parte da ideia de que existe um ser humano em essência. E a existência precede a essência. O Sartre já resolveu isso há muito tempo. A tentativa desse projeto é de pensar linguagem e território. É preciso romper com essa ideia de que o pobre como criador deve partir de sua vida melodramática. E os mediadores vão provocar isso. Vamos passar por um “looping” de oficinas. São dez sábados num mergulho de criação. E no dia 12 de setembro faremos uma intervenção na cidade.

Heloísa – Estou atenta ao desenvolvimento da expressão. Acredito que se trata de um gesto político. Ter a palavra é ter a voz. Meu projeto é esse: que as pessoas realmente consigam instrumentalizar bem a palavra para poder argumentar e fazer as suas demandas. E o Faustini está muito ligado à questão do território e de memória. E a chave que ele encontrou de memória afetiva é fantástica. Ele não trabalha com uma memória fria, contada, mas uma memória experimentada. Isso faz uma grande diferença, principalmente pelo uso da palavra. Na Bíblia está escrito: “No princípio era o verbo” e eu acho que no fim também vai ser o verbo.

O Apalpe vai seguir o modelo do Guia Afetivo da Periferia, o livro do Faustini. A ideia é que cada um faça o seu “Guia Afetivo”. Como surgiu o livro?
Heloísa – Ouvia as pessoas falarem sem parar sobre os movimentos da periferia, sobre os talentos da periferia etc. Mas eram sociólogos, antropólogos, que mal tinham pisado na periferia. Eu pensei: está na hora de dar voz aos protagonistas destes movimentos. Então, abri essa coleção, que será uma coleção de 30 volumes, na qual as pessoas contam sua experiência, ou seu projeto cultural, ou sua própria experiência pessoal. São livros escritos por líderes. Quando o Faustini me trouxe esse texto, me apaixonei imediatamente. Eu acho que isso vai ser muito exercitado no Apalpe.

Faustini – O Apalpe é uma tentativa minha de esgarçar o “Guia afetivo da periferia”. Demorei mais de 30 anos para me encorajar a escrever um livro. Eu venho de periferia e nunca somos encorajados a escrever. Somos mais encorajados a falar na periferia. Eu penei muito até encontrar como artista a precisão do que eu queria falar. Quando pensei no Apalpe, pensei em uma maneira de as pessoas se aproximarem do meu livro. Fui vender o meu livro na rua. Vejo que a arte, hoje, não deve criar representações. Meu livro não é uma representação. Meu livro é um dispositivo. Se fosse escrever um romance, talvez não conseguisse. Mas como criei um dispositivo, que foi escrever sobre ruas, consegui. Então, pensei: meu livro deve ser um dispositivo de criação para outras pessoas. É o meu fundo comunista, querendo ser comum a todos.

Por que incentivar a criação de novos “Guias da periferia”?
Faustini – O território é tudo, menos o mapa. Aceitamos, na representação de pobre no Brasil, que o homem era a terra. Euclides da Cunha fez isso em os Sertões, por exemplo. Em Vidas Secas, Graciliano Ramos fala da subjetividade de Fabiano misturado àquele sertão. O homem do povo já foi o homem da terra. O homem de origem popular da cidade é o seu território. Estou seguindo uma linha de interpretação literária. Eu não estou fazendo um projeto social. Estou fazendo um projeto estético com designer social.

Heloísa – O Faustini quer ter esse mapa da periferia, como ele fez de forma brilhante a memória do seu trânsito pela cidade, quando jovem. O Faustini é muito político, quis dar essa chance para muita gente e, além disso, ter o resultado desse mapeamento do afeto territorial das pessoas.

Desde o século XIX, personagens da periferia vêm sendo retratados na Literatura Brasileira. Qual é a diferença do retrato feito dos personagens da periferia para seu autorretrato?
Heloísa – Acredito que há diferença sim. É quase inevitável que os traços fiquem em preto e branco, já que a pessoa não conhece aquilo bem. Não que se faça isso sempre, mas acontece. Quando se trata de um autorretrato, há um carrego de nuance muito grande. A diferença entre essas literaturas é mais de intensidade de nuances.

Faustini – Eu só li livros de pessoas de origem de classe média. Demorou muitos anos para eu ler livros de pessoas de origem popular. E quero ouvir mais gente de origem popular. E o Rio de Janeiro popular para mim, hoje, não é apenas a favela, a comunidade, o conjunto habitacional. É também a rua, a Lapa. O popular é a maior invenção da cultura brasileira. Não quero que haja apenas pessoas da classe média escrevendo sobre o popular. Quero gente de origem popular escrevendo sobre o popular. Está na hora de termos intelectuais de origem popular. Esse é o meu comunismo. E aí o Brasil vai ficar mais interessante assim.

E como surgiu essa parceria?
Faustini – Eu sou um menino de origem popular que sempre reverenciei os mestres da cultura brasileira. Procuro a colisão afetiva.

Heloísa – O Faustini é fissurado em território. E sou sou mais fissurada em palavra. Por isso, acredito que vai dar uma boa química. Eu seguro a palavra e Faustini o tema, apesar de ele ser um exímio usuário da palavra. Ele escreve muito bem.

E o que vocês diriam a quem está interessado em participar do Apalpe?
Heloísa – Vai fundo porque vai dar certo. Temos sonhos gigantescos para esse projeto.

Faustini – A obra é criar as estratégias para que todos façam obras.

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